e você que fica por aí tão Ofélia, personagem que mais
tive medo até hoje. porque conheço seus momentos de
sabedoria altiva, mas nao me conformo com invejas
morrendo no chão da cozinha. como Ofélia você entra,
senta: - Sou eu, Ofélia Maria dos Santos Aguiar. e como
sua voz decidida a opinar sobre tudo - assim com a tal
menina tão perversa - começa a fazer com que desista.
seus pés tremem e quero pará-los. me chateiam. me
irritam tanto quanto seus conselhos tão exatos que
penso de onde veio tal exatidão em crítica. mas mãe
não pensa antes de falar, é tão exata quanto não é
cega. enxerga tudo. é tão doce e tão perversa que
desaba o mundo em minha testa e me acorda com
cheiro de café, com cheiro de domingo as onze da
manhã. ela não vê as cicatrizes em minha testa, porque
também é cega - sempre que quer.
é tão Ofélia Maria dos Santos Aguiar, tão pequena
distraída, conselheira magoada, acoada por um pinto
na cozinha, tão amargurada com o pinto que não pode
ser seu que o mata silenciosamente e, desta vez,
sem extidão e sem falar do amor ao filho ou da duração
de legumes da ultima feira. e você que prefere o silencio
que dura tanto, balança o pé, contempla o vazio, mas
não me entra que escolhe tão pouco pra não me deixar.
eu estou, ela está. fico porque quero. não, porque não
tenho aonde ir. e então, segundo clarice:
- é um pinto?
- é um pinto, sim.
- um pintinho? certificou-se em dúvida.
- um pintinho, sim, disse eu guiando-a com cuidado
para a vida.
- ah, um pintinho, disse meditando.
- um pintinho, disse eu sem brutalizá-la.
Já há alguns minutos eu me achava diante de uma criança.
fizera-se a metamorfose.
- ele está na cozinha.
- na cozinha? repetiu fazendo-se de desentendida.
- na cozinha, repeti pela primeira vez autoritária, sem
acrescentar nada.
- ah, na cozinha, disse Ofélia muito fingida, e olhou para
o teto.
Mas ela sofria. com alguma vergonha notei afinal que estava
me vingando. A outra sofria, fingia, olhava para o teto.
A boca, as olheiras.
- você pode ir pra cozinha brincar com o pintinho.
- eu...? perguntou sonsa.
- mas só se você quiser.
(C)larice Lispector, A legião estrangeira.